Alguns poemas:
DE VERÃO
I
No campo;
eu acho nele a musa que me anima:
A claridade, a
robustez, a acção.
Esta manhã, saí
com minha prima,
Em quem eu noto a
mais sincera estima
E a mais completa e
séria educação.
II
Criança
encantadora! Eu mal esboço o quadro
Da lírica
excursão, de intimidade.
Não pinto a velha
ermida com seu adro;
Sei só desenho de
compasso e esquadro,
Respiro indústria,
paz, salubridade.
III
Andam cantando aos
bois; vamos cortando as leiras;
E tu dizias:
«Fumas? E as fagulhas?
Apaga o teu
cachimbo junto às eiras;
Colhe-me uns
brincos rubros nas ginjeiras!
Quanto me alegra a
calma das debulhas!
IV
E perguntavas sobre os últimos inventos
Agrícolas. Que
aldeias tão lavadas!
Bons ares! Boa
luz! Bons alimentos!
Olha: Os saloios
vivos, corpulentos,
Como nos fazem
grandes barretadas!
V
Voltemos! No ribeiro abundam as ramagens
Dos olivais
escuros. Onde irás?
Regressam os
rebanhos das pastagens;
Ondeiam milhos,
nuvens e miragens,
E, silencioso, eu
fico para trás.
VI
Numa colina brilha
um lugar caiado.
Belo! E, arrimada
ao cabo da sombrinha,
Com teu chapéu de
palha, desabado,
Tu continuas na
azinhaga; ao lado,
Verdeja, vicejante,
a nossa vinha.
VII
Nisto, parando,
como alguém que se analisa,
Sem desprender do
chão teus olhos castos,
Tu começaste,
harmónica, indecisa,
A arregaçar a
chita, alegre e lisa,
Da tua cauda um
poucochinho a rastos.
VIII
Espreitam-te, por
cima, as frestas dos celeiros;
O sol abrasa as
terras já ceifadas,
E alvejam-te, na
sombra dos pinheiros,
Sobre os teus pés
decentes, verdadeiros,
As saias curtas,
frescas, engomadas.
IX
E, como quem
saltasse, extravagantemente,
Um rego de água,
sem se enxovalhar,
Tu, a austera, a
gentil, a inteligente,
Depois de bem
composta, deste à frente
Uma pernada
cómica, vulgar!
X
Exótica! E
cheguei-me ao pé de ti. Que vejo!
No atalho enxuto,
e branco das espigas,
Caídas das
carradas no salmejo.
Esguio e a
negrejar em um cortejo,
Destaca-se um
carreiro de formigas.
XI
Elas, em
sociedade, espertas, diligentes.
Na natureza
trémula de sede,
Arrastam bichos,
uvas e sementes
E atulham, por
instinto, previdentes,
Seus antros quase
ocultos na parede.
XII
E eu desatei a rir
como qualquer macaco!
«Tu não as
esmagares contra o solo!»
E ria-me, eu
ocioso, inútil, fraco,
Eu de jasmim na
casa do casaco
E de óculo deitado
a tiracolo!
XIII
«As ladras da
colheita! Eu, se trouxesse agora
Um sublimado
corrosivo, uns pós
De solimão, eu, sem maior demora,
Envenená-las-ia!
Tu, por ora,
Preferes o
romântico ao feroz.
XIV
Que compaixão! Julgava até que matarias
Esses insectos importunos! Basta.
Merecem-te espantosas simpatias?
Eu felicito suas senhorias,
Que honraste com um pulo de ginasta!»
XV
E enfim calei-me.
Os teus cabelos muito loiros
Luziam, com
doçura, honestamente;
De longe o trigo
em monte, e os calcadoiros,
Lembravam-me
fusões de imensos oiros,
E o mar um prado
verde e florescente.
XVI
Vibravam, na
campina, as chocas da manada;
Vinham uns carros
a gemer no outeiro,
E finalmente,
enérgica, zangada,
Tu, inda assim
bastante envergonhada,
Volveste-me,
apontando o formigueiro:
XVII
«Não me incomode,
não, com ditos detestáveis!
Não seja
simplesmente um zombador!
Estas mineiras
negras, incansáveis,
São mais
economistas, mais notáveis,
E mais
trabalhadoras que o senhor!»
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DE TARDE
Naquele piquenique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
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O Sentimento dum Ocidental
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.
Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de <<dom>>!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!
Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
<<Dó da miséria!... Compaixão de mim!...>>
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!
O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
Cesário Verde
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BIBLIOGRAFIA:
BARREIROS, António José, História da Literatura
Portuguesa, Volume 1,Edição do Autor, Braga,1996.
2. COELHO, Jacinto do Prado , Dicionário de Literatura,
Livraria Figueirinhas, Porto, 1981.
3. QUINTELA, Dulce et alii, Temas de Língua e Cultura
Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, Junho,1980.
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