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"Sê plural como o Universo!"

 

"Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim

haja de humano, eu o dividi entre os autores vários

de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o

ponto de reunião de um pequena humanidade só minha."

 

Fernando Pessoa

 

Alberto Caeiro

"Eu não tenho filosofia: tenho sentidos."

Alberto Caeiro

 

²            Breve "percurso biográfico" de Alberto Caeiro ( elementos recolhidos na carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro):

®      nasce em Lisboa, a 16 de Abril de 1899;

®      órfão de pai e mãe, muda-se para o campo onde vive até ao fim da sua vida;

®    louro, de olhos azuis, apenas com a 4.ª classe, nunca exerceu nenhuma profissão.

 

Alberto Caeiro

² É o Mestre que Pessoa opõe a si mesmo, com o qual tem que aprender:

ð  a viver sem dor;

ð  a envelhecer sem angústia; a morrer sem desespero;

ð  a fazer coincidir o ser com o estar;

ð  a combater o vício de pensar;

ð  a ser um ser uno (não fragmentado).

²  Vive de impressões, sobretudo visuais. Ver, exclusivamente ver.

²  Identifica-se com a Natureza, vive segundo o seu ritmo, deseja  diluir-se nela , integrando-se nas leis do Universo, como se fosse um rio ou uma planta.

²  Lírico, instintivo, espontâneo, ingénuo, inculto (em relação à sabedoria escolar).

²  Recusa a introspecção e a subjectividade, abre-se ao mundo exterior com passividade e alegria. É o poeta do real objectivo.

²  Recusa a expressão em termos de sentimentos.

²  Não quer saber do passado nem do futuro. Vive no presente.

²  Defende a existência antes do pensamento; o corpo antes do espírito.

 

Arte Poética de Caeiro:

²     Fazer poesia é uma atitude involuntária, espontânea.

²    Transformação do abstracto no concreto, frequentemente através da comparação (e da metáfora).

²     Simplicidade da linguagem. Tom familiar.

² Liberdade estrófica e do verso, ausência de rima.

 


 

²  Considerado por Fernando Pessoa como Mestre dos heterónimos e do próprio Pessoa ortónimo, Caeiro exprime e representa a visão marcadamente não-humana, primitiva e "pura" da Natureza e até do Homem. Despido da emoção (da subjectividade) e anulada toda a cultura (a Razão) que o Homem foi criando (Alberto Caeiro não possuía mais do que a instrução primária, era "guardador de rebanhos" e vivia num outeiro...), este heterónimo faz da pura sensação e do objectivismo (absoluto) o "ideário" da existência e da sua escrita. Uma poesia feita duma matéria habitualmente não-poética, em que a linguagem procura estar o mais próxima possível das coisas, das sensações, pois as ideias e os conceitos são um obstáculo ao puro sentir e ao puro viver. E as palavras, intencionalmente despidas de artifícios retórico-estilísticos, bem como o versilibrismo, procuram, assim, ser o espelho sem mancha dessa ingenuamente sábia "ciência de ver".

Como o Mestre não tem preocupações de ordem metafísica e social (como acontece com Pessoa e com Álvaro de Campos), é a única criação pessoana que conhece a Verdade das coisas - porque não as pensa. "Com filosofia não há árvores, há ideias apenas"...

Mas é precisamente pelo facto de a Verdade não ser transmissível, que melhor se compreende, por oposição, o drama de Pessoa-Campos.

 

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Bibliografia:

  1. Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 8.ª edição, Lisboa, Ed. Verbo, 1985.

  2. Eduardo Lourenço, Pessoa Revisitado, Porto, Ed. Inova, 1973.

  3. Eduardo Lourenço, Fernando - Rei Da Nossa Baviera, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, col. Temas Portugueses, 1986.

  4. Diciopédia, Porto Editora.

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O Guardador de Rebanhos - Poema VIII
 

     Num meio-dia de fim de primavera
     Tive um sonho como uma fotografia.
     Vi Jesus Cristo descer à terra.
     Veio pela encosta de um monte
     Tornado outra vez menino,
     A correr e a rolar-se pela erva
     E a arrancar flores para as deitar fora
     E a rir de modo a ouvir-se de longe.

     Tinha fugido do céu.
     Era nosso demais para fingir
     De segunda pessoa da Trindade.
     No céu era tudo falso, tudo em desacordo
     Com flores e árvores e pedras.
     No céu tinha que estar sempre sério
     E de vez em quando de se tornar outra vez homem
     E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
     Com uma coroa toda à roda de espinhos
     E os pés espetados por um prego com cabeça,
     E até com um trapo à roda da cintura
     Como os pretos nas ilustrações.
     Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
     Como as outras crianças.
     O seu pai era duas pessoas
     Um velho chamado José, que era carpinteiro,
     E que não era pai dele;
     E o outro pai era uma pomba estúpida,
     A única pomba feia do mundo
     Porque não era do mundo nem era pomba.
     E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

     Não era mulher: era uma mala
     Em que ele tinha vindo do céu.
     E queriam que ele, que só nascera da mãe,
     E nunca tivera pai para amar com respeito,
     Pregasse a bondade e a justiça!

     Um dia que Deus estava a dormir
     E o Espírito Santo andava a voar,
     Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
     Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
     Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
     Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
     E deixou-o pregado na cruz que há no céu
     E serve de modelo às outras.
     Depois fugiu para o sol
     E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

     Hoje vive na minha aldeia comigo.
     É uma criança bonita de riso e natural.  
     Limpa o nariz ao braço direito, 
     Chapinha nas poças de água,
     Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.  
     Atira pedras aos burros,
     Rouba a fruta dos pomares
     E foge a chorar e a gritar dos cães.
     E, porque sabe que elas não gostam
     E que toda a gente acha graça,
     Corre atrás das raparigas pelas estradas
     Que vão em ranchos pela estradas
     com as bilhas às cabeças
     E levanta-lhes as saias.

     A mim ensinou-me tudo.
     Ensinou-me a olhar para as cousas.
     Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
     Mostra-me como as pedras são engraçadas 
     Quando a gente as tem na mão
     E olha devagar para elas.

     Diz-me muito mal de Deus.
     Diz que ele é um velho estúpido e doente,
     Sempre a escarrar no chão
     E a dizer indecências.
     A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
     E o Espírito Santo coça-se com o bico
     E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
     Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
     Diz-me que Deus não percebe nada
     Das coisas que criou —
     "Se é que ele as criou, do que duvido" —
     "Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória, 
     Mas os seres não cantam nada.
     Se cantassem seriam cantores.
     Os seres existem e mais nada,
     E por isso se chamam seres."
     E depois, cansados de dizer mal de Deus,
     O Menino Jesus adormece nos meus braços
     e eu levo-o ao colo para casa.
     .............................................................................
     Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
     Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
     Ele é o humano que é natural,
     Ele é o divino que sorri e que brinca.
     E por isso é que eu sei com toda a certeza
     Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

     E a criança tão humana que é divina
     É esta minha quotidiana vida de poeta,
     E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
     E que o meu mínimo olhar
     Me enche de sensação,
     E o mais pequeno som, seja do que for,
     Parece falar comigo.

     A Criança Nova que habita onde vivo
     Dá-me uma mão a mim
     E a outra a tudo que existe
     E assim vamos os três pelo caminho que houver,
     Saltando e cantando e rindo
     E gozando o nosso segredo comum
     Que é o de saber por toda a parte
     Que não há mistério no mundo
     E que tudo vale a pena.

     A Criança Eterna acompanha-me sempre.
     A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
     O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
     São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

     Damo-nos tão bem um com o outro
     Na companhia de tudo
     Que nunca pensamos um no outro,
     Mas vivemos juntos e dois
     Com um acordo íntimo
     Como a mão direita e a esquerda.

     Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
     No degrau da porta de casa,
     Graves como convém a um deus e a um poeta,
     E como se cada pedra
     Fosse todo um universo
     E fosse por isso um grande perigo para ela
     Deixá-la cair no chão.

     Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
     E ele sorri, porque tudo é incrível.
     Ri dos reis e dos que não são reis,
     E tem pena de ouvir falar das guerras,
     E dos comércios, e dos navios
     Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
     Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
     Que uma flor tem ao florescer
     E que anda com a luz do sol
     A variar os montes e os vales,
     E a fazer doer nos olhos os muros caiados.

     Depois ele adormece e eu deito-o.
     Levo-o ao colo para dentro de casa
     E deito-o, despindo-o lentamente
     E como seguindo um ritual muito limpo
     E todo materno até ele estar nu.

     Ele dorme dentro da minha alma
     E às vezes acorda de noite
     E brinca com os meus sonhos.
     Vira uns de pernas para o ar,
     Põe uns em cima dos outros
     E bate as palmas sozinho
     Sorrindo para o meu sono.
     ......................................................................
     Quando eu morrer, filhinho,
     Seja eu a criança, o mais pequeno.
     Pega-me tu ao colo
     E leva-me para dentro da tua casa.
     Despe o meu ser cansado e humano
     E deita-me na tua cama.
     E conta-me histórias, caso eu acorde,
     Para eu tornar a adormecer.
     E dá-me sonhos teus para eu brincar
     Até que nasça qualquer dia
     Que tu sabes qual é.
     .....................................................................
     Esta é a história do meu Menino Jesus.
     Por que razão que se perceba
     Não há de ser ela mais verdadeira
     Que tudo quanto os filósofos pensam
     E tudo quanto as religiões ensinam?

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