VIAGENS NA MINHA
TERRA
A Génese da Obra
Suscitado por uma viagem do Autor a
Santarém, em 1843, a convite do político Passos Manuel, que lá vivia,
este livro, o mais moderno de quantos Almeida Garrett escreveu,
combina, com intencional negligência, ao gosto romântico, o
relato da viagem com
reflexões e
divagações sobre múltiplos temas, e tem ainda embrechada
uma novela cuja acção se desenrola no
período das lutas entre liberais e miguelistas. Começou a
publicar-se em 1843, na Revista Universal Lisbonense... Saiu em volume
em 1846.
As considerações de Garrett
incidem na crise que o nosso país atravessava, os seus sintomas, as
suas causas e as directrizes... vagamente indicadas, dum processo de
cura. Condenando o materialismo que nos invadia, nostálgico da passada
grandeza nacional, Garrett confiava ainda no futuro português
porque adivinhava no povo um tesouro de energias latentes: "o
povo, o povo povo, está são: os corruptos somos nós os
que cuidamos saber e ignoramos tudo". O povo conservava a fé
religiosa; ora, para o Autor; cristianismo e liberdade andam
juntos, ambos condicionam o bem-estar colectivo, a dignidade humana e
a grandeza pátria: "A religião do Cristo é a mãe da Liberdade, a
religião do Patriotismo a sua companheira". O culto das tradições,
o respeito pelos velhos monumentos, o interesse pelo folclore, o
regresso às fontes genuínas da nacionalidade são a lição constante das
Viagens.
A parte novelesca das
Viagens enlaça-se, até
certo ponto, com a meditação sobre a crise do Portugal coevo. A
novela tem dois centros de
interesse: Frei Dinis,
personagem-fulcro duma tragédia de família, que emparelha com o
Frei Luís de Sousa e descai, por vezes, no melodrama; e
Carlos, que participa
dessa tragédia enquanto filho do tenebroso Frei Dinis, mas que
sofre um problema seu, independente do mais: a instabilidade afectiva.
Carlos é incapaz de se dar por
inteiro no amor; por isso foge à cândida Joaninha, sua prima, por isso
lhe diz que é um "monstro" indigno da afeição que ela lhe
dedica. Ali a tragédia é conduzida por um Destino implacável:
sem o saber, e em legítima defesa, Dinis
assassinara o marido da amante, que era a mãe de Carlos, e esta
morrera de dor e de remorsos. O caso de
Carlos, porém (trágico apenas na medida em que vitima
Joaninha), deriva dum modo de ser
temperamental; e Carlos, apesar do "horror”
que diz provocar a si próprio, não deixa de comprazer-se com certa
vaidade na sua inconstância donjuanesca, fruto dum coração "grande
de mais". Ora bem: Frei
Dinis, homem "superior", de "erudição
imensa", encarna o Portugal velho em vias de desaparecer;
Carlos, que luta a favor dos
liberais, é expoente do Portugal novo, e acaba candidato a
deputado e barão - o que se liga à ideia do burguesismo triunfante.
Através de Frei Dinis exprime
Garrett o respeito por certos valores tradicionais e o desengano
do liberalismo de escola – diferente do espírito liberal como o
Autor o entendia e preconizava.
As Viagens
são o ponto de partida da modernização da prosa literária em
Portugal: Garrett usa um estilo extremamente vivo, dúctil, com
giros e expressões coloquiais - um estilo que se molda ao pensamento
no seu fazer-se, apto a sugerir leves emoções, associações fugidias,
estados de devaneio, os meandros duma nova sensibilidade. Até em
alguns traços de impressionismo irónico Garrett se antecipa a
Eça de Queirós.
Jacinto do Prado Coelho,
Dicionário de Literatura
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O relato da
viagem e as digressões do narrador
A intencionalidade
crítica (ironia e sátira)
§
Leitura dos seguintes
extractos:
A -
Cap. III, p. 28
("Vamos à descrição da estalagem.") a 30 ( "Nada,
nada,
verdade e mais verdade.");
B - Cap.
IV , p. 33 ("Por mim, não conheço objecto mais
lindo (...) é igual diante da lei
romântica.");
C - Cap. V , p. 36
("Trata-se de um romance, de um drama..." (...) "E aqui
está como nós fazemos a
nossa literatura original.");
D - Cap.
VIII, p. 55: "Eu amo a charneca. E não sou
romanesco. Romântico, Deus me livre de o ser - ao menos, o que na
algarvia de hoje se entende por essa palavra.";
E - Cap. XXIII,
p. 153 ("Já se vê (...)tão obscuros como estes").
§
O narrador critica
irónica e satiricamente e de uma forma desassombrada as "modas"
literárias da época, construindo mesmo os rudimentos da sua "teoria
literária".
NOTA:
os excertos dizem
respeito à edição de Viagens na Minha Terra, de Luís Amaro de
Oliveira, Porto Editora.
Abordagem dos textos:
¨
Que se critica?
A-
- a literatura de café;
-
a incoerência entre a "espiritualidade" literária e o
materialismo da sociedade;
- os "cânones" pretensamente românticos
(referir o valor irónico do diminutivo).
O texto acaba com a valorização do verdadeiro como
única lei possível de ser aceite na literatura: "Rien n'est beau que
le vrai."
B -
- os "cânones" clássicos;
- os excessos "românticos".
C -
a falta de honestidade e de originalidade no trabalho literário.
D
-
o narrador defende a sua individualidade e demarca-se daqueles
que interpretam erradamente a palavra “romântico”.
E –
- as “ regras” da escola romântica ( ironia);
- as
“absurdas e escravizantes regras dessa pateta dessa escola clássica” (
ironia).
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§
Leitura dos seguintes extractos:
A - Cap.
III, pp. 27 ("Não: plantai batatas...") a 28
(“E como tal, presunçosa e cheia de orgulho dos néscias");
B - Cap. IV,
pp. 32 ("Francamente, pois...") a 33 ("...
estou falando de modéstia e nós ");
C - Cap.
VII, p. 53: "Mas o sistema liberal, tirada a época das
eleições, não é grande coisa .";
D- Cap. XX,
p. 133: “Uniforme tão militar, tão nacional, tão caro a
nossas recordações que essas gentes, prostituidoras de tudo quanto
havia nobre, popular e respeitado nesta terra, proscreveram do
exército... por muito português de mais talvez! deram-lhe baixa para
os belequins da alfândega, reformaram-no em uniforme da bicha!”
E -
Cap. XXVI, p. 169: "Mas enfim
(...) a poesia daquelas idades maravilhosas”.
F - Cap.
XLIX, dois últimos parágrafos (p. 293).
Abordagem dos textos:
¨
Que aspectos são criticados?
A - - o materialismo
excessivo das medidas governativas;
- a falta de preocupação pela
valorização da "espécie humana";
- a falta de ética dos grandes e
dos poderosos.
B
- - a falta de cultura, de bom senso, de educação
dos governantes nacionais.
C - o
eleitoralismo do sistema liberal.
D - a
falta de respeito e de interesse pelo que é nacional, genuíno,
verdadeiramente popular.
E -
a incúria e o desleixo das autoridades administrativas e municipais
para com o património arquitectónico nacional.
F - a errada política de comunicações do Governo,
dominado pelos barões.
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“ Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina
el-rei Sancho.” (Viagens, Cap. II, p. 22).
A crítica ao materialismo da época, ao
reinado dos barões e de "el-rei Sancho", é talvez a
constante temática mais trabalhada ao longo das
Viagens.
Para além deste facto, é importante também referir
que a oposição materialismo/espiritualismo,
concretizada nos pares D. Quixote/Sancho
e frade/barão,
não só é trabalhada ao longo das digressões, mas também na
própria novela. Como já atrás se sublinhou o percurso de
Frei Dinis (num crescendo de
espiritualidade) e o de Carlos
(de espiritualista a materialista) também ilustram a dicotomia
espírito/matéria.
Texto:
(...) o livro tem
contudo uma unidade profunda logo anunciada no fundamental cap.,
quando esse "eu" que pretende ser
identificado com Garrett
revela que a obra "é um símbolo" e se refere depois ao materialismo e
ao espiritualismo como aos princípios avessos, mas fatalmente juntos,
que sempre regeram o mundo, "ora um atrás, ora outro mais adiante,
empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo
sempre”.(...)
Assim colocadas quase no início da obra, estas
advertências revelam ao leitor o cerne temático pelo qual
todas as convicções que constituem as Viagens (inclusivamente a
novela) se interligam, deixando-o também esclarecido sobre a
óptica desenganada que se esconde por detrás do espirituoso fluir do
discurso: esse "eu" que lhe fala
com desenvoltura assiste sem ilusões à comédia do seu tempo
chocando-se sempre com a sua mesquinhez, embora convicto já que os
Absolutos - Verdade, Belo, Bem - não serão nunca
uma meta de chegada da história; necessariamente precária, a condição
humana não admite outro progresso que não seja esse devir contínuo que
o tempo impõe, caminhando forçosamente para diante numa dialéctica
sempre renovada entre Quixote e
Sancho.
Ofélia Paiva
Monteiro, Viagens na Minha Terra, o nascer da modernidade literária
portuguesa
Abordagem do texto:
¨
Aspectos fundamentais:
§
Identificação entre o “
eu - narrador" e
Garrett.
§
A dialéctica materialismo/espiritualismo
como mola impulsionadora do progresso do mundo.
§
Leitura dos seguintes extractos:
· Cap.
II (pp. 21-25);
· Cap.
XIII (pp. 89-94).
Abordagem dos textos:
(Caps. II e XIII)
Ao longo destes dois capítulos o narrador (aqui
claramente identificável com Garrett aborda de uma forma
incisiva, mas extremamente satírica, a problemática
materialismo/espiritualismo.
E escolhe na galeria de tipos literários universais duas figuras
paradigmáticas: Sancho Pança, o
símbolo do materialismo, e D. Quixote,
o símbolo do espiritualismo (Cap. II).
Neste capítulo (II), o narrador
ainda tenta "desculpar" o materialismo
que domina a sociedade sua contemporânea, referindo que: "Mas, como
na história do malicioso Cervantes, estes dois princípios tão avessos,
tão desencontrados, andam contudo juntos sempre; ora um mais atrás,
ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se
poucas, mas progredindo sempre." (Cap. II, p. 22).
No entanto, no capítulo XIII, o tom do
narrador endurece, não só pela virulência dos ataques que desfere
contra os materialistas, mas, sobretudo, porque esses ataques
concretizados através da referência a aspectos da vida nacional.
Aqui o par escolhido é constituído pelo
frade (símbolo do passado e
do espiritualismo) e pelo barão
(símbolo do presente, do materialismo e da corrupção
dos ideais liberais).
“O frade
era, até certo ponto, o D. Quixote da
sociedade velha.
O barão
é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança
da sociedade nova.” (Cap. XIII, p. 90)
Ao
longo do capítulo os ataques aos barões
multiplicam-se "...o barão é o mais desgracioso e estúpido animal
da criação (...) é zebrado de riscas monárquico-democráticas por todo
o pêlo" (p. 90), mas os
frades, apesar do seu conservadorismo e do seu
despotismo, acabam por ser "desculpados", pelo papel que desempenhavam
junto da população (na arte, na educação...) espiritualizando a
sociedade e por uma falha de comunicação entre eles e os primeiros
liberais, o que conduziu ao domínio dos barões.
“Ora, sem sair dos
barões e tornando aos frades,
eu digo: que nem eles compreenderam o nosso século nem nós os
compreendemos a eles...
Por isso brigámos muito tempo, afinal vencemos
nós, e mandámos os barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma
sandice como nunca se fez outra. O barão mordeu no frade, devorou-o...
e escoiceou-nos a nós depois." (Cap. XIII, p. 91)
A esta crítica mordaz contra os barões não será
estranho o profundo desencanto de Garrett face ao rumo que a
sociedade e a política da época levavam, esquecidos que estavam os
ideais liberais das décadas de 20 e 30.
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“Santarém é um
livro de pedra em que a mais interessante e mais poética parte das
nossas crónicas está escrita. ...
O povo de cuja história ela é o livro, ainda existe, mas esse povo
caiu em infância, deram-lhe o livro para brincar, rasgou-o, mutilou-o,
arrancou-lhe folha a folha, e fez papagaios e bonecas, fez carapuços
com elas.
Não se descreve de outro modo o que esta gente chamada governo,
chamada administração, está fazendo e deixando fazer há mais de um
século em Santarém.
As ruínas do tempo são
tristes mas belas, as que as revoluções trazem ficam marcadas com o
cunho solene da história. Mas as brutas degradações e as mais brutas
reparações da ignorância, os mesquinhos consertos da arte parasita,
esses profanam, tiram todo o prestígio.”
Almeida
Garrett,
in Viagens, Cap. XXIX, pp. 183-184
NOTA: Relativamente à
novela da Menina
dos Rouxinóis os aspectos mais importantes foram estudados
nas aulas.
................................................................................
BIBLIOGRAFIA:
1. BARREIROS, António José,
História da Literatura Portuguesa, Volume 1,Edição do Autor,
Braga,1996.
2. COELHO, Jacinto do Prado , Dicionário de Literatura,
Livraria Figueirinhas, Porto, 1981.
3. MOREIRA, Vasco, PIMENTA, Hilário, Dimensão Comunicativa -
11.ºAno, Porto, Porto Editora,1998.
4. MONTEIRO, Ofélia Paiva, Viagens Na Minha Terra, Lisboa,
1993.
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