MEMORIAL DO CONVENTO
Romance
Agora,
sim, podem partir. O padre Bartolomeu Lourenço olha o espaço celeste
descoberto, sem nuvens, o sol que parece uma custódia de ouro, depois
Baltasar que segura a corda com que se fecharão as velas, depois
Blimunda, prouvera que adivinhassem os seus olhos o futuro,
Encomendemo-nos ao Deus que houver, disse-o num murmúrio, e outra vez
num sussurro estrangulado, Puxa, Baltasar, não o fez logo Baltasar,
tremeu-lhe a mão, que isto será como dizer Fiat, diz-se e aparece
feito o quê, puxa-se e mudamos de lugar, para onde. Blimunda
aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de Baltasar, e, num só
movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a corda.
A vela correu toda para um lado, o sol bateu em cheio nas bolas de âmbar,
e agora, que vai ser de nós. A máquina estremeceu, oscilou como se
procurasse um equilíbrio subitamente perdido, ouviu-se um rangido
geral, eram as lamelas de ferro, os vimes entrançados, e de repente,
como se a aspirasse um vórtice luminoso, girou duas vezes sobre si própria
enquanto subia, mal ultrapassara ainda a altura das paredes, até que,
firme, novamente equilibrada, erguendo a sua cabeça de gaivota, lançou-se
em flecha, céu acima. Sacudidos pelos bruscos volteios, Baltasar e
Blimunda tinham caído no chão de tábuas da máquina, mas o padre
Bartolomeu Lourenço agarrara-se a um dos prumos que sustentavam as
velas e assim pôde ver afastar-se a terra a uma velocidade incrível, já
mal se distinguia a quinta, logo perdida entre colinas, e aquilo além,
que é, Lisboa, claro está, e o rio, oh, o mar, aquele mar por onde eu,
Bartolomeu Lourenço de Gusmão, vim por duas vezes do Brasil, o mar por
onde viajei à Holanda, a que mais continentes da terra e do ar me levarás
tu, máquina, o vento ruge-me aos ouvidos, nunca ave alguma subiu tão
alto, se me visse el-rei, se me visse aquele Tomás Pinto Brandão que
se riu de mim em verso, se o Santo Ofício me visse, saberiam todos que
sou filho predilecto de Deus, eu sim, eu que estou subindo ao céu por
obra do méu génio, por obra também dos olhos de Blimunda, se haverá
no céu olhos como eles, por obra da mão direita de Baltasar, aqui te
levo, Deus, um que também não tem a mão esquerda, Blimunda, Baltasar,
venham ver, levantem-se daí, não tenham medo.
Não tinham medo, estavam apenas assustados com a sua
própria coragem. O padre ria, dava gritos, deixara já a segurança do
prumo e percorria o convés da máquina de um lado a outro para poder
olhar a terra em todos os seus pontos cardeais, tão grande agora que
estavam longe dela, enfim levantaram-se Baltasar e Blimunda,
agarrando-se nervosamente aos prumos, depois à amurada, deslumbrados de
luz e de vento, logo sem nenhum susto, Ah, e Baltasar gritou,
Conseguimos, abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar, parecia uma
criança perdida, um soldado que andou na guerra, que nos Pegões matou
um homem com o seu espigão, e agora soluça de felicidade abraçado a
Blimunda, que lhe beija a cara suja, então, então. O padre veio para
eles e abraçou-se também, subitamente perturbado por uma analogia,
assim dissera o italiano, Deus ele próprio, Baltasar seu filho,
Blimunda o Espírito Santo, e estavam os três no céu, Só há um Deus,
gritou, mas o vento levou-lhe as palavras da boca. Então Blimunda
disse, Se não abrirmos a vela, continuaremos a subir, aonde iremos
parar, talvez ao sol.
Nunca perguntamos se haverá juízo na loucura,
mas vamos dizendo que de louco todos temos um pouco. São maneiras de
nos segurarmos do lado de cá, imagine-se, darem os doidos como pretexto
para exigir igualdades no mundo dos sensatos, só loucos um pouco, o mínimo
juízo que conservem, por exemplo, salvaguardarem a própria vida, como
está fazendo o padre Bartolomeu Lourenço, Se abrirmos de repente a
vela, cairemos na terra como uma pedra, e é ele quem vai manobrar a
corda, dar-lhe a folga precisa para que se estenda a vela sem esforço,
tudo depende agora do jeito, e a vela abre-se devagar, faz descer a
sombra sobre as bolas de âmbar e a máquina diminui de velocidade, quem
diria que tão facilmente se poderia ser piloto nos ares, já podemos ir
à procura das novas Índias. A máquina deixou de subir, está parada
no céu, de asas abertas, o bico virado para o Norte, se se está
movendo, não parece. O padre abre mais a vela, três quartas partes das
bolas de âmbar estão já à sombra, e a máquina desce suavemente, é
como estar dentro de um bote num lago tranquilo, um jeito no leme, um
harpejo de remo, as coisas que um homem é capaz de inventar. Devagar, a
terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o rectângulo torto do
Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das
varandas onde o padre morava, e onde agora estão entrando os familiares
do Santo Ofício para o prenderem, tarde piaram, gente tão escrupulosa
dos interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, é certo
que, a tal altura, a máquina é um pontinho no azul, como levantariam
os olhos se estão aterrados diante de uma Bíblia rasgada na altura do
Pentateuco, de um Alcorão feito em pedaços indecifráveis, e já saem,
vão na direcção do Rossio, do palácio dos Estaus, a informar que
fugiu o padre a quem iam buscar para o cárcere, e não adivinham que o
protege a grande abóbada celeste aonde eles nunca irão, é bem verdade
que Deus escolhe os seus favoritos, doidos, defeituosos excessivos, mas
não familiares do Santo Ofício. Desce a passarola um pouco mais, com
algum esforço se observa a quinta do duque de Aveiro, é certo que
estes aviadores são principiantes, falta-lhes a experiência que
permitiria identificar de relance os acidentes principais, os cursos de
água, as lagoas, as povoações como estrelas derramadas no chão, as
escuras florestas mas lá estão as quatro paredes da abegoaria, o
aeroporto donde levantaram voo, lembra-se o padre Bartolomeu Lourenço
de que tem um óculo na arca, em dois tempos o vai buscar e aponta, oh
que maravilha é viver e inventar, vê-se claramente, a enxerga ao
canto, a forja, só o cravo desapareceu, que foi que aconteceu ao cravo,
nós o sabemos e vamos dizer, que indo Domenico Scarlatti à quinta,
viu, já chegando perto, levantar-se de repente a máquina, num grande
sopro de asas, que faria se elas batessem, e tendo entrado deu com os
destroços da largada, as telhas partidas, espalhadas pelo chão, as
ripas e os barrotes cortados ou arrancados, não há nada mais triste
que uma ausência, corre o avião pista fora, levanta-se ao ar, só fica
uma pungente melancolia, esta que faz sentar-se Domenico Scarlatti ao
cravo e tocar um pouco, quase nada, apenas passando os dedos pelas
teclas como se estivessem aflorando um rosto quando já as palavras
foram ditas ou são de menos, e depois, porque muito bem sabe ser
perigoso deixar ali o cravo, arrasta-o para fora, sobre o chão
irregular, aos solavancos, gemem desencontradas as cordas, agora sim se
desacertarão os saltarelos e vai ser para nunca mais, levou Scarlatti o
cravo até ao bocal do poço, felizmente que é baixo, e levantando-o em
peso, muito lhe custa, o precipita a fundo, bate a caixa duas vezes na
parede interior, todas as cordas gritam, e enfim cai na água, ninguém
sabe o destino para que está guardado, cravo que tão bem tocava, agora
descendo, gorgolejando como um afogado, até assentar no lodo. Do alto já
não se vê o músico, vai por aí, por essas azinhagas, porventura
desviando o caminho, porventura olhando para cima, torna a ver a
passarola, acena com o chapéu, uma vez só, melhor é disfarçar,
fingir que não sabe nada, por isso não o viram da nave, quem sabe se
tornarão a encontrar-se.
O vento está do Sul, uma brisa que mal faz agitar os cabelos de
Blimunda, com esta aragem não poderão ir a lado algum, seria o mesmo
que querer atravessar o oceano a nado, por isso Baltasar pergunta, Dou
ao fole, todas as moedas têm duas faces, primeiro proclamou o padre, Só
há um Deus, agora quer Baltasar saber, Dou ao fole, primeiro o sublime,
depois o trivial quando, Deus não sopra, tem o homem de fazer força.
Mas o padre Bartolomeu Lourenço parece ter sido tocado por um ramo de
estupor, não fala, não se mexe, apenas olha o grande círculo da
terra, uma parte de rio e mar, uma parte de monte e planície, se aquilo
não é espuma, além, será a vela branca duma nau, se não for farrapo
de névoa é fumo de chaminé, e contudo dir-se-ia que o mundo acabou,
os homens nele, o silêncio aflige, e o vento caiu, nem um cabelo de
Blimunda se move. Dá ao fole. Baltasar, disse o Padre.
http://nobelprize.org/literature/laureates/1998/saramago-prose-p.html
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