Álvaro de Campos
"Sentir tudo
de todas as maneiras"
Álvaro de Campos
º
Breve
referência ao "percurso biográfico" de
Álvaro Campos(1):
ð
nasce em Tavira, a 15 de Outubro de 1890;
ð
forma-se em Engenharia Naval, em Glasgow, na Escócia;
ð
alto, magro, tipo vagamente de judeu português, usa
monóculo.
(1) Elementos
retirados da carta de Fernando Pessoa a Adolfo casais Monteiro, 1935.
º
É o oposto de
Caeiro pelo drama ontológico que
exprimiu, pela maior envolvência no Modernismo
e por manifestar uma trajectória evolutiva da sua obra poética - cuja
edição crítica (Poemas de Álvaro de Campos) foi publicada pela
Imprensa Nacional - Casa da Moeda (Lisboa, 1992), sob a responsabilidade
de Cleonice Berardinelli.
Pessoa
atribuiu a este célebre heterónimo alguns dados biográficos com interesse: nasceu em Tavira em 1890,
formou-se em engenharia naval por Glasgow (não é gratuito o facto de estas
cidades serem marítimas), e viveu inactivo em Lisboa. Costuma ver-se
três fases na evolução da escrita de
Campos: a
primeira, a decadentista, é a que mais se aproxima da nossa
poesia finissecular; a segunda, a
modernista, corresponde à experiência de vanguarda iniciada com
Orpheu; e a
terceira é a negativista, na qual a angústia de
existir e ser mais se evidencia e se radicaliza. É, por isso, o
poeta pessoano que mais se multiplicou na busca incessante do Absoluto e
da Verdade.
Poema:
O Binómio de Newton
O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó
(O vento lá fora.) |
Álvaro de Campos
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º
ÁLVARO DE CAMPOS
É o poeta cantor da
vida moderna, das máquinas, da velocidade, da energia mecânica.
Sente-se nos seus poemas uma atracção quase erótica pelas máquinas,
símbolo da vida moderna. Há no poeta uma paixão visceral pela
civilização moderna industrial: "Ah! não
poder exprimir-me todo como um motor / ser completo como uma máquina!"
Mas, a par desta paixão,
há a náusea, a neurastenia provocada pela poluição física
e moral da vida moderna: "A dolorosa luz das
grandes lâmpadas eléctricas. da fábrica/tenho febre e escrevo./Escrevo
rangendo os dentes..."
Álvaro de
Campos
aprende de Caeiro a
urgência de sentir, mas não lhe basta a "sensação das coisas como
são". Ele precisa de "sentir tudo de todas as maneiras",
não se contenta senão com "sensações brutais”. Este desmedido
sensacionismo de
Campos vai dar origem ao seu
estilo desmedido que constitui a
maior rotura na literatura portuguesa e o ponto mais alto do
Modernismo (Futurismo)
em Portugal.
A Ode Triunfal,
publicada no primeiro Orpheu
e a Ode Marítima, publicada no segundo, quer pela
violência das sensações à maneira do poeta inglês Whitman, quer
pelo estilo escandalosamente novo, aparentemente desleixado, com
uma grande irregularidade de estrofes e de versos (métrica), com uma
imagética chocantemente arrojada, com inumerações caóticas, anáforas,
aliterações e onomatopeias, constituem o ponto mais brilhante da poesia
verdadeiramente futurista.
Álvaro de
Campos
é, como Cesário Verde,
um poeta urbano: Como ele, embora de forma mais chocantemente
futurista, focou a cidade e a sua multidão anónima e também o cansaço e
o tédio de si mesmo. Campos
evoluciona, nos poemas, de uma euforia desmedida para uma imensa
angústia que muitas vezes se exprime por meio de amargas ironias.
Veja-se, por exemplo, a grande ironia que transparece do poema
Tabacaria. Toda a desordem de ritmos, toda a violência
de metáforas e expressões, provêm do desespero de não poder meter
nas palavras o tamanho das sensações. E o próprio
Campos que afirma: "A emoção
intensa não cabe na palavra: tem que baixar ao grito ou subir ao canto".
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Bibliografia:
-
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e
Unidade em Fernando Pessoa, 8.ª edição, Lisboa, Ed. Verbo, 1985.
-
Eduardo Lourenço, Pessoa Revisitado,
Porto, Ed. Inova, 1973.
-
Eduardo Lourenço, Fernando - Rei Da Nossa Baviera, Lisboa,
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, col. Temas Portugueses, 1986.
-
Diciopédia, Porto Editora.
-
BARREIROS, António
José, História da Literatura Portuguesa, Volume 1, Edição do
Autor, Braga,1996.
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ºººº
Álvaro de Campos
ODE TRIUNFAL 6-1914
À dolorosa luz das grandes lâmpadas
eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera
para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente
desconhecida dos antigos.
Ó
rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos
maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos
dissecados fora,
Por todas as papilas fora de
tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó
grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de
perto,
E arde-me a cabeça de vos
querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas
sensações,
Com um excesso contemporâneo de
vós, ó máquinas!
Em
febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de
ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e
também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o
passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro
das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram
humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do
século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre
para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de
transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando,
estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias
ao corpo numa só carícia à alma.
Ah,
poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como
um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me
fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me
completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e
calores e carvões
Desta flora estupenda, negra,
artificial e insaciável!
Fraternidade
com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser
parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina
transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos
guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e
monótono das correias de transmissão!
Horas
europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés - oásis de
inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se
precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas
e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e
das gares!
Novos entusiasmos de estatura do
Momento!
Quilhas de chapas de ferro
sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos
planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional,
transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo
nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e
nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L'Opéra
que entram
Pela minh'alma dentro!
Hé-lá
as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára
às montras!
Comerciantes; vários; escrocs
exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes
aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias;
chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de
oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que
passa e nunca passa!
Presença demasiadamente
acentuada das cocotes
Banalidade interessante (e quem
sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha
geralmente,
Que andam na rua com um fim
qualquer;
A graça feminil e falsa dos
pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente
elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!
(Ah,
como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)
A
maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos
financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum
regicídio
Que ilumina de Prodígio e
Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização
quotidiana!
Notícias
desmentidas dos jornais,
Artigos políticos
insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse,
grandes crimes -
Duas colunas deles passando para
a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de
tipografia!
Os cartazes postos há pouco,
molhados!
Vients-de-paraître amarelos
como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a
todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as
maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e
com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos
representa para mim!)
E com a inteligência como uma
antena que fazeis vibrar!
Ah,
como todos os meus sentidos têm cio de vós!
Adubos,
debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio
quase uma ciência!
Ó mostruários dos
caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes,
cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas
e dos calmos escritórios!
Ó
fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a
gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias
secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm
e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói,
com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de
cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos
gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões,
metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como
uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a
minha vista
Em vós, ó coisas grandes,
banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma
actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica
de Deus!
Ó
fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó
docas flutuantes -
Na minha mente turbulenta e
encandescida
Possuo-vos como a uma mulher
bela,
Completamente vos possuo como a
uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se
acha interessantíssima.
Eh-lá-hô
fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos
grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições
ministeriais!
Parlamentos, políticas,
relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural
como uma árvore
E um parlamento tão belo como
uma borboleta).
Eh-lá
o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os
brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa
entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando
as costas
E sendo misericordiosamente o
mesmo
Que era quando Platão era
realmente Platão
Na sua presença real e na sua
carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que
havia de não ser discípulo dele.
Eu
podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa
entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das
fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de
maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno
e eu e barulho!
Up-lá
hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de
duas cores!
(Ser
tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão
sexual!)
Eh-lá,
eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de
encontro às vossas esquinas.
E
ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
Ó
tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao
espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena
cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos
e de...,
Ó multidões quotidianas nem
alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde
eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que
coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos,
as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os
deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a
sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém
pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar
tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um
cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me
agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em
pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
Ah,
e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como
palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas
das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e
eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto
decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos
andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de
estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana
que vive como os cães
Que está abaixo de todos os
sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi
feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para
eles!
Como eu vos amo a todos, porque
sois assim,
Nem imorais de tão baixos que
sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os
progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do
mar da vida!
(Na
nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à
roda,
E o mistério do mundo é do
tamanho disto.
Limpa o suor com o braço,
trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio
das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância
era outra coisa
Do que eu sou hoje...)
Mas,
ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão
movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar
indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo
de todos os navios,
Que a estas horas estão
levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio,
ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios,
ó guindastes, ó rebocadores!
Eh-lá
grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias
de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos
dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui,
ali, acolá,
Alterações de constituições,
guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências,
e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros
amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!
Que
importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído
contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da
civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o
Momento,
O Momento de tronco nu e quente
como um fogueiro,
O Momento estridentemente
ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de
todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da
bebedeira dos metais.
Eia
comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies,
férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão,
aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas
rotativas!
Eia!
eia! eia!
Eia electricidade, nervos
doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios,
simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá,
Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do
presente!
Eia todo o futuro já dentro de
nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica
cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro.
Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de
todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a
electricidade!
Eia!
e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e
tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar
com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
Hup-lá,
hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah
não ser eu toda a gente e toda a parte!
Londres, 1914 - Junho.
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