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PEREGRINAÇÃO

 

1. Título

 

Doze anos depois do regresso ao Reino, no seu retiro do Pragal, começou Fernão Mendes Pinto a redigir uma obra, onde se misturam elementos de autobiografia, de memórias e de ficção. Deu-lhe o sugestivo título de Peregrinação.

Só foi publicada em 1614, trinta anos após a morte do autor.

 

2. Classificação

 

No fundo, trata-se de um conjunto de memórias autobiográficas.

Torna-se, porém, bastante difícil distinguir nesta obra o que é produto da imaginação daquilo que é pura história. Mendes Pinto consegue dar às narrações uma roupagem tão concreta e tão cheia de vida que tudo nos parece natural e verídico.

Durante muito tempo, pensou-se que a maioria das peripécias narradas no livro não passariam de deslavada mentira. Até parafrasearam assim o seu nome: Fernão, Mentes? Minto.

No entanto, com o descobrir do mundo oriental, sobretudo nos nossos dias, chegou-se a opinião contrária. Cristóvão Aires e Venceslau de Morais; para só falarmos dos nossos, puderam verificar a exactidão de muitas afirmações feitas pelo escritor acerca da China e do Japão, nas quais ninguém acreditava. Em 1947, o professor Le Gentil voltou a insistir num certo fundo de verdade do exotismo da Peregrinação.

Convençamo-nos, todavia, de que muitos diálogos moralizantes, cartas de várias individualidades que transcreve, discursos de personagens, etc., são pura invencionice. Hiperboliza também bastante os números, quando nos diz, por exemplo, que, «em menos de um credo», se juntaram 50 000 pessoas, numa praça, para assistirem ao fim de Diogo Soares (Peregrinação, cap. 192).

 

 

 

3. Mensagem da obra

 

Costumam os críticos ver nas entrelinhas da Peregrinação uma sátira contundente ao modo como os Portugueses se relacionavam e comerciavam com os povos orientais, e à pouca ou nenhuma coerência que havia entre as suas acções e a sua condição de cristãos.

É claro que esta crítica existe. Pretendeu-a directamente o autor? No capítulo primeiro, depois de enumerar os trabalhos por que passou, só nos diz que fez

 

«esta rude e tosca escritura, que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha tenção escrevê-la), para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que passei no discurso de vinte e um anos [...]; e daqui, por uma parte, tomem os homens motivo de se não desanimarem c'os trabalhos da vida, [...] e, por outra, me ajudem a dar graças ao Senhor Omnipotente, por usar comigo de sua infinita misericórdia».

 

Três são, pois, os fins explícitos que o levaram a compor o livro:

1.     dar a conhecer aos filhos os seus trabalhos;

2.     encorajar os desesperados e os que se vêem em dificuldades;

3.     ter quem o ajude a dar graças a Deus.

 

Mas, por detrás destes fins explícitos, não podemos deixar de perceber um contínuo e nem sempre dissimulado tom de sátira: às andanças de muitos Portugueses por terras e mares do Oriente.

 

4. Conteúdo exótico

 

O que se conhecia no século XVI acerca do exótico mundo oriental, limitava-se a notícias muito vagas oferecidas pelas obras de João de Barros, Castanheda e Diogo do Couto, a alguns dados mais concretos nas descrições feitas pelo capitão e apóstolo das Molucas, António Galvão {Tratado [...] dos diversos [...] caminhos, por onde [...]a pimenta [...] veio da Índia às nossas partes - Lisboa, 1563) e pelo dominicano Fr. Gaspar da Cruz (Tratado em que se contam muito por extenso as cousas da China [...] - Évora, 1570), bem assim como a algumas referências contidas em cartas de missionários jesuítas.

 

 

Quem desvendou com maior pormenorização esse labirinto pleno de exotismo foi o livro de Fernão Mendes Pinto.

1.    Descreve bem os exteriores geográficos da Índia, China e Japão: terras, cidades, templos, palácios, choupanas, estuários e cursos de rios, enseadas, litorais lamacentos, florestas, campinas.

2.    Desenha com perfeição curiosos quadros de etnografia: leis, costumes tradicionais, moral, assistência, administração de justiça, impostos em vigor, guerras, festas, bodas, funerais, o comércio e outras actividades de trabalho.

3.    Não se olvida de, ou em curtas digressões ou em narrações de casos concretos, nos pintar o carácter dessas longínquas populações do Oriente: sua docilidade e crueldade, sua hospitalidade ou venalidade e interesse, sua religiosidade, etc.

 

Graças a este exotismo com que nos surpreende do princípio ao fim, a Peregrinação ainda hoje se lê com deleitação e curiosidade.

 

 

 

 

5. A crítica à acção dos Portugueses

 

Temos de concordar que os indivíduos com quem andou Fernão Mendes Pinto lá no Oriente não eram do que melhor se criava em Portugal. Geralmente, passou os dias ao lado de mercadores que pouca diferença faziam dos piratas profissionais, homens sem escrúpulos a quem só interessava ganhar dinheiro. Ora o que esses praticavam está um pouco longe de ser um reflexo perfeito da acção de todos os Portugueses. Daí o não devermos cair no exagero de generalizar o que diz Mendes Pinto acerca de si e de seus companheiros, julgando por eles os restantes civilizadores do Sol Nascente.

Mesmo assim, Mendes Pinto ficava radiante, se, no meio das torturas a que os Orientais o submetiam com frequência, deparava com meia dúzia de compatriotas. Veja-se, por exemplo, o que lhe sucedeu entre os indígenas de Samatra e como o trataram depois os nossos em Malaca (Peregrinação, caps. 23, 24 e 25). Foi como se saísse dum inferno e entrasse num céu. Isto quer dizer que, em Mendes Pinto, nem todos os Orientais são anjos nem todos os Portugueses procedem como selvagens.

Mas o que não podemos negar é a realidade feia e vergonhosa desses portugueses que ele nos mostra

afundando barcos indefesos para os roubar,

raptando noivas e violando mulheres,

chacinando e queimando povoações inteiras,

saqueando sarcófagos e templos,

servindo com despudor corsários muçulmanos, se calhava.

O processo de que Mendes Pinto se serve para verberar os abusos cometidos pela nossa gente é engenhoso. Não faz ele as críticas em nome próprio: geralmente coloca-as, por artifício literário, na boca de nativos.

Algumas dessas personagens nativas são mero produto de ficção. Quem sabe até se as criou para não arranjar problemas com quaisquer pessoas? As palavras ásperas que por intermédio delas profere, como suas, dificilmente passariam impunes; mas, como dos aborígenes, ficavam sob a responsabilidade dos mesmos.

 

Uma destas figuras típicas é o menino prodígio, a cujo pai António de Faria roubou, na ilha dos Ladrões, tudo quanto tinha. Feito prisioneiro, o menino viu-se amimado pelo pirata português, que prometeu criá-lo como filho. Perante esta atitude incoerente, disse-lhe a criança:

 

«Não cuides de mim, inda que me vejas menino, que sou tão parvo que possa cuidar de ti que, roubando-me meu pai, me hajas a mim de tratar como filho. E, se és esse que dizes, eu te peço muito, muito, muito que me deixes botar a nado a essa triste terra onde fica quem me gerou, porque esse é o meu verdadeiro pai, com o qual quero antes morrer ali naquele mato, onde o vejo estar-me chorando, como viver entre gente má como vós outros sois».

 

Como alguém o repreendesse pelo que dizia, continuou:

 

«Sabeis porque vo-lo digo? Porque vos vi a louvar a Deus, depois de fartos, com as mãos levantadas e com os beiços untados, como homens que lhe parece que basta arreganhar os dentes ao céu, sem satisfazer o que teem roubado. Pois entendei que o Senhor da Mão Poderosa não nos obriga tanto a bulir com os beiços, quanto nos defende tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dois pecados tão graves, quanto depois de mortos conhecereis, no rigoroso castigo da sua divina justiça».

 

Este menino não pode deixar de ser uma criação literária, até porque, nas expressões que usa, se assemelha a um profeta bíblico.

 

 

 

 

6.    Concepção anticlássica do homem

 

O século XVI caracteriza-se pela exaltação do homem. Se não fica mal o emprego de uma locução pleonástica e o de um paradoxo, digamos até que o século XVI começou por humanizar o homem e depois divinizou-o. Valorizadas então as faculdades humanas, o Rei da Criação erguia-se e dominava a Natureza; desafiava os próprios deuses; de nada tinha medo; transformava-se automaticamente em herói.

O Classicismo só conheceu este homem. O aleijado, o medroso, o fora da lei, estes ignorou-os.

Pois o homem da Peregrinação em nada se parece com o homem clássico: nem em virtudes morais nem em força física. As traições e os crimes de toda a espécie sucedem-se e são narrados com um cinismo de espantar. Por outro lado, de heroicidades, muito pouco ou nada. Que longe estão dos homens de Barros e de Camões, por exemplo, os dois náufragos portugueses que, em Lugor, no Sião, «em joelhos e com as mãos levantadas», pediram «com muitas lágrimas» a uns barqueiros que os «não deixassem morrer ali!» (Peregrinação, cap. 37).

O próprio autor, longe de bazofiar, arrasta-se pela obra adiante como um «pobre de mim» e considera-se quase sempre um desses «pobres estrangeiros», designação compassiva com que os naturais de coração bondoso tantas vezes se referiram aos portugueses da Peregrinação, vergastados pela má sorte.

 

Cheia de humanismo pela simpatia com que olha todas as raças, a Peregrinação põe-nos diante dos olhos o anti-herói, o homem que tem mais medo do que coragem, o homem que, em vez de dominar a Natureza, é por ela desfeiteado a cada passo, o homem que, vencidos, sem saber como, milhentos perigos, pouco mais tem a fazer do que dar graças ao Deus que o salvou.

 

7. Linguagem e estilo

 

Fernão Mendes Pinto não é o que positivamente se pode chamar um homem culto. Curioso, isso sim. Ouviu ler histórias chinesas, viu com olhos de lince, reteve bem na memória e lançou-se à escrita com a única preocupação de comunicar o seu pensamento.

A sua linguagem, por isso, é despreocupada como a de quem fala, de cunho oral, se exceptuarmos algumas tiradas poéticas e retóricas em cartas que com certeza forjou, como a do rei dos Batas a António de Faria, na qual se refere assim ao monarca português:

 

«Leão coroado no trono espantoso das águas do mar, assentado por poderio incrível no assopro de todos os ventos» (Peregrinação, cap. 13).

 

O estilo afasta-se dos moldes clássicos na arquitectura da narração, que é desproporcionada nos quadros e deixa algumas histórias sem remate.

Fere-nos os olhos da imaginação com berrante cor local graças à acumulação de pormenores realistas, às vezes até fastidiosos. Uma vez por outra, vemo-lo usar singela linguagem figurada:

 

«E trazendo-nos [...] banqueteados cada hora de muitos açoutes, quis sua boa fortuna que [...] houveram vista de uma vela» (Peregrinação, cap. 1);

 

«De vinte e oito pessoas que nela íamos, os vinte e três se afogaram em menos de um credo» (Peregrinação, cap. 23);

 

«E, com vida cansada e triste, coei todos estes males e desgostos» (Peregrinação, cap. 37).

 

In BARREIROS, António José, História da Literatura Portuguesa,

Volume 1 – séc. XII- XVIII.

 

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Quando às vezes ponho diante dos olhos

 

I

Quando às vezes ponho diante dos olhos

A lusitana viagem

Medonha

Que eu dobrei

Os tormentos passados

E os fados que chorei

Arde o corpo em oração

Entre pecado e perdão

Agonia o coração

E arde o corpo

Do cotovelo da terra

À pestana do mundo

Fui treze vezes cativo

Dezassete vendido

Mataram os mares

Milhares

Num gemido

Ai de mim sou missionário

Foge cofre

Já sou corsário

Marinheiro

Voluntário

Ai de mim

Quando às vezes ponho diante dos olhos

A fúria da onda tremenda

Rasgada no vento

O assombro

Da fronha de um monstro

Que horrenda

Estampada no breu

Ai meu Deus

O aperto em que estou

 

Olha o cobre e o ouro

Olha o bobo que eu sou

 

Que se escapa o tesouro

Que me dá a fraqueza

 

Enriquece bandido

A saudade do Tejo

 

O inventário da presa

Meu amor dá-me um beijo

 

Afasta-o do sentido

E lá vou eu desvalido

 

II

Quando às vezes ponho diante dos olhos

Os trabalhos tremendos

Os perigos que passei

O Inferno maldito

Infinito

Que afrontei

Vem à boca uma prece

A alma inteira estremece

Arde

Grita

Enlouquece

E vem à boca

Um amargo de morte arrefece-me o corpo

Um grande medo

Meu Deus

Que estala no peito

Só o meu coração respira

Amores perfeitos

Que eu nem conto em segredo

Que eu risquei do enredo

Num latino arremedo

Que eu nem conto

Quando às vezes ponho diante dos olhos

Cobras

Lagartos

Mostrengos

Horríveis

Sarnentos

O delírio dos rios

Das selvas ardentes

Da febre a queimar

A matar

Terra à vista

Atenção

 

Espia como mercador

Eu cá sou benfeitor

 

Assalta como ladrão

Olha o rombo na quilha

 

Olha a tua quadrilha

Quem me dera estar longe

 

Empunha o machado

Ser um anjo ser monge

 

Aguenta safado

Sendo o mais enjeitado

 

III

De Lisboa p’ rá Índia

Da Tartária ao Sião

Da China à Etiópia

De Ormuz ao Japão

P’ lo Cabo do Mundo

Passei por um triz

Da Ilha Maluca

À Arábia Feliz

São de todas as cores

As paixões os ardores

Na voragem do cio

O amor aplacado

Entre esteiras deitado

No porão do navio

Vai o sonho entornado

 

Quando às vezes ponho diante dos olhos

As guerras

Assaltos e gritas

O sangue a jorrar

A alagar

Os turcos

Senhora bendita

Lançados ao mar

A afundar

Tangendo panelas

 

P’ró diabo que os leve

Infiéis tagarelas

 

Filhos de Mafamede

Ai da vossa cegueira

 

Dispara O roqueiro

No rescaldo da afronta

 

Amordaça o escravo

Rezo pela desconta

 

És cruzado és um bravo

Dos pecados sem conta

 

IV

De Lisboa p’ rá Índia

Da Tartária ao Sião

Da China à Etiópia

De Ormuz ao Japão

P’ lo Cabo do Mundo

Passei por um triz

Da Ilha Maluca

À Arábia Feliz

São de todas as cores

As paixões os ardores

Na voragem do cio

O amor aplacado

Entre esteiras deitado

No porão do navio

Vai o sonho entornado

Foi de fio a pavio

P'ró diabo que os leve

Infiéis tagarelas

Filhos de Mafamede

Ai da vossa cegueira

Dispara o roqueiro

Amordaça o escravo

És cruzado és um bravo

Espia como mercador

Assalta como ladrão

Olha o rombo na quilha

Empunha o machado

Olha a tua quadrilha

Aguenta safado

Dos pecados sem conta

És o mais enjeitado

O aperto em que estás

Olha o cobre e o ouro

Que se escapa o tesouro

Que te dá a fraqueza

Enriquece bandido

No rescaldo da afronta

Ai quem te dera estar longe

Ser um anjo ser monge

Reza pela desconta

Entre apupos e gritas

De mãos alevantadas

Treme o bom jesuíta

Ai Jesus que embrulhada

Em pouco mais de dois credos

Dois mil mortos no chão

Pelejando um milhão

Soçobrados em sangue

Estalam mil bofetadas

No traseiro de um cafre

Sobrevoa o milhafre

Seis cabeças rachadas

Muitas feridas e chagas

Numa grande chacina

Entre insultos e pragas

Chovem panelas de urina

Vinte e três afogados

Trinta e quatro perdidos

Nus e ajoelhados

Sem contar os aflitos

Pelas pernas abaixo

Vai o pobre de mim

De Quedá a Samatra

De Malaca a Pequim

Fugindo a sete pés

Quando estoira o convés

Perde-se ouro o provento

A prata fina a  saúde

Mas glória santa me ajude

A dar graças a Deus

Misericórdia infinita

Pois eu não me lamento

Se ao fim de tantos tormentos

Escapei deles com vida

O Senhor seja louvado

Santos apostolados

Viva eu entre os mortais

Pois não mereci mais

Por meus grandes pecados

 

  Fausto, Por este rio acima, 1984