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Vergílio Ferreira
roteiro
 

Vergílio Ferreira  roteiro

 

 

 

 

 

Aparição

 

    A história passa-se numa família burguesa de uma pequena cidade, mas não se trata de "cenas da vida privada" nem de "cenas da vida de província". (...) Esta narrativa liga-se mais à tradição do romance "de aprendizagem". O professor novato que acaba de ser colocado no liceu de Évora, o seu primeiro local de ensino. A memória da sua infância, da sua terra, do seu pai morto, ainda pesa bastante sobre ele. Julga ter finalmente encontrado a sua verdade; quer anunciar aos outros a boa nova que lhe foi revelada pela experiência da repentina "aparição" da sua presença em si próprio. Mas o apóstolo ingénuo leva a tragédia àqueles que o acolhem; descobre as diversas formas do mal e do sofrimento; reconhece os limites estreitos da sua condição. Tropeça na incompreensão do médico piedoso, do proprietário estroina, do engenheiro ateu, do reitor demasiado prudente. Consome-se no desejo fantasioso pela demasiado jovem Sofia, no sonho luciferiano do seu aluno Carolino, que perverteu a sua mensagem. Ana, a esposa sensata e estéril, será a única capaz de o seguir, Cristina, a fada musical, criança-prodígio que já está, ela sim, muito para além; ela ultrapassou-o, voa sobre o caminho por que ele se arrasta; mas ela acaba por morrer de morte violenta, como Sofia, como o velho camponês cujos filhos são recolhidos por Ana depois do seu suicídio. A Alberto só lhe resta partir de novo. Os seus esforços para comunicar com os outros foram em vão. Queria levar-lhes a verdade, mas foi ele quem porventura aprendeu com eles o sentido da sua vida. Aquele ano em Évora terá sido uma iniciação. Talvez lhe faltassem aquelas provações para chegar, finalmente, à idade adulta.

A acção enlaça-se e desenlaça-se, na pequena cidade, apenas num ano escolar, ritmada pelas estações; e tudo é visto pelo olhar único do personagem-autor, Alberto Soares. Mas esta unidade de acção, de lugar, de tempo e de ponto de vista desmultiplica-se em sequências sucessivas, com retrocessos e deslocações do campo da memória, E esta estrutura fragmentada, com desnivelamentos de momentos e lugares, mas onde tudo converge para um centro invisível, como o ponto de fuga de uma perspectiva, pelo efeito de simetrias e de invocações dos mesmos motivos, que define a forma do romance. Alberto faz a sua narrativa muito tempo depois dos acontecimentos; situa-os num passado definitivamente concluído, que ele relembra para reencontrar o sabor, o rumor, o sentido, através de um trabalho de memória que é o próprio romance enquanto se faz. Mas o narrador fala também no presente, nos dois textos em itálico que enquadram a narrativa, escrita na sua casa de campo actual. E a memória remonta, por vezes, a um período anterior aos acontecimentos narrados, ao da morte do pai, na quinta familiar da Beira. (...)

Teve, com a morte do pai, a intuição súbita daquilo que é ser-se, ocupar o seu ser, sentir-se vivo entre vivos. Foi a meditação da morte que lhe deu a chave da vida. Esta experiência iluminadora é uma alegria e um sofrimento, pois abre ao ser humano um vasto espaço de liberdade, ao mesmo tempo que o faz tocar os limites da sua condição. É este o preço do acesso a uma vida autêntica, em que o homem poderá reconquistar aqui em baixo toda a sua grandeza recentemente extraviada na imaginação do divino.

 

Robert Bréchon

prefácio à edição francesa de Aparição, in revista Ler

 

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